Passando da euforia do turismo europeu à canícula do Alto Minho, a maior parte de nós julgava-se verdadeiramente emigrada em Ponte de Lima.
António Sousa Homem1 de Agosto de 2021 às 00:30
Nos tempos em que as férias eram um privilégio dos ricos e das classes que desconheciam orgulhosamente o País, o velho Doutor Homem, meu pai, mitigava o egoísmo ministrando algum módico de civilização à família, ou seja, ao grupo desorganizado de adolescentes que então éramos. Ele e Dona Ester, minha mãe, tinham uma memória romântica por Biarritz (onde teve lugar a proposta de casamento), a “estância”, como nessa altura se dizia no Porto – e que estava cheia de outros portuenses que nutriam pela Península Ibérica o mesmo desinteresse e até desprezo. Por esse motivo, e para não magoar a memória dos seus dias felizes de Biarritz, a família rumou então para outras paragens, desejosa de civilização, de História e de línguas estrangeiras, coisa que não encontrava – pelo menos com esse regime de abundância – dentro das nossas fronteiras, então circunscritas pelo fim da guerra.
Regressávamos desse período de 15 dias de férias com maneiras à mesa, uma mala de pequenas recordações (como a caneta Parker com que escrevo estas crónicas semanais) e um ligeiro cansaço. E, então, começava a emigração fatal para Ponte de Lima, de onde a família jurava que ninguém conseguia retirá-la até que terminasse Agosto ou chegassem as primeiras desilusões meteorológicas de Setembro. Passando da euforia do turismo europeu à canícula do Alto Minho, a maior parte de nós julgava-se verdadeiramente emigrada em Ponte de Lima, no casarão que ainda hoje conserva as memórias e certos pudores dos Homem.
Verificando aquilo que considerava “a perniciosa influência do estrangeiro”, a Tia Benedita, matriarca miguelista da família, observava com precaução aquele bando de ateus, candidatos a pedreiros-livres e apóstatas que iam para o Velho Minho discutir – à mesa, como de costume – ou contemporizar com a vida em geral. Ela referia-se a nós, e sabia que os passeios por Paris, Nice ou Roma não eram um bom prenúncio para a moralidade daqueles dias. Ela não chegou aos dias de hoje para assistir ao descalabro das classes médias, mas, como amostra, aquele bando era suficiente: preguiçando, folheando livros de que a senhora desconfiava, ouvindo as árias de ópera que o velho Doutor Homem, meu pai, transportava para Ponte de Lima para que todos conhecêssemos a sua soprano preferida, Anna Moffo.
O tempo passou. Ponte de Lima recebe-nos este mês para o habitual reencontro de família –, mas Moledo ocupou o lugar do velho casarão de granito e roseiras de Santa Teresinha. Neste tempo de vacinas e de zaragatoas, o iodo é ainda um tempero romântico e médico para justificar a permanência nos areais até ao fim da tarde. Ao fim da manhã, quando aquele frio moderado e amistoso se levanta, há uma mancha de azul que cobre a nossa vida lembrando os Verões de antanho. A própria palavra, “antanho”, lembra coisas de antanho. Ai de nós, que não somos deste tempo.